CAPÍTULO XIV

"RELIGIÃO COM ENFOQUE PSICOLÓGICO"

 

A religião é a mais antiga expressão da alma humana e também a mais Universal. Não existe aquele povo, por mais primitivo que seja, ou mais isolado que se encontre, que não tenha suas crenças.

Através dos fenômenos da natureza que expressam poder, perigo, grandiosidade, beleza, harmonia, o homem pressente a existência de algo maior do que ele. Não conseguindo identificar, não conseguindo penetrar esses fenômenos com o seu mental, não conseguindo reproduzi-los, ele passa a temer esse desconhecido e, esse temor, dá surgimento à religiosidade, que se exterioriza por uma atitude interna de respeito, de reverência, de dependência.

Ao longo dos tempos, como vimos, muitos seres, conhecedores dos mistérios da Natureza, têm procurado revelar ao homem aspectos desta grandiosidade que é o Universo, ensinamentos esses que estão contidos na Sabedoria Iniciática das Idades, ou seja, na filosofia Oriental, junto aos povos mais primitivos.

Ao passo que o homem foi se afastando dessas origens, dessas fontes que explicam as Causas Universais, mais ele foi abandonando a verdadeira mística, que seria a união entre o ser objetivo e aquilo que há de imponderável dentro dele, foi perdendo a capacidade de penetrar os mistérios e foi se entregando ao misticismo, que é o apego a dados externos, encaminhando-se em direção a uma fé cega que tende para o fanatismo.

Quando o progresso científico se ampliou, a partir dos séculos XVII e XVIII, as linhas do pensamento que se encaminharam para o materialismo e o racionalismo, foram tendendo à não aceitação do espírito religioso, cujas práticas, a essa época, já apresentavam características de imaturidade e, por extensão, passaram a desacreditar dos fenômenos psíquicos de uma maneira geral. Quer dizer que caíram no extremo oposto. Do fanatismo, passaram para o ceticismo. 

O homem perdeu, com razão, a capacidade de crer, por causa das proposições vigentes, e não encontrou o substitutivo. 

Podemos notar que, ao desenvolvimento científico e técnico, vem correspondendo uma grande carência de introspecção. 

Todavia, apesar de a ciência gabar-se de lidar com fatos aparentes, leis, a cada passo, em virtude do mental racional não abarcar as experiências, os fatos, os objetos na sua totalidade, a ciência se defronta com inúmeras incógnitas sobre as quais há necessidade de se levantarem hipóteses, a fim de que a ciência consiga penetrar além do imediatamente sensível. 

É preciso, portanto, um certo cuidado ao se negar a realidade dos fenômenos psíquicos porque todo o arcabouço da ciência está montado sobre imagens psíquicas despertadas pela estimulação de nossos sentidos. O pesquisador cria um modelo mental. É um tipo de saque em cima do futuro e passa a testá-lo. 

Com esta atitude, o cientista pode não ter fé na acepção que as religiões emprestam a este termo, mas está dotado do verdadeiro espírito místico, uma vez que está buscando descobrir as leis que regem a parte que ainda se constitui em mistério para a própria ciência.

A ciência sabe que está apenas no limiar de toda a grandiosidade Universal. A atitude mais científica seria não a de negar arbitrariamente a validade dos fenômenos psíquicos, mas a de se propor a uma investigação, experimentando processos não relacionados a experiências científicas como a entendemos hoje.

Acontece que os fenômenos psíquicos que envolvem religiosidade são aparentemente subjetivos, por serem expressos por idéias, mas vão se tornando cada vez mais objetivos, vão se transformando em fatos, na medida em que são partilhados por um grupo maior de indivíduos, na medida em que aparecem de forma semelhante ou até mesmo idêntica em uma quantidade grande de pessoas, tal como acontece com as experiências paranormais - telepatia, premonição etc.  Isto vem dar à psicologia uma possibilidade de ser tratada como ciência, com fase de observação, classificação e levantamento estatístico.

Os fenômenos psíquicos são reais para quem os experimenta. Assim como para a ciência sobram realidades não explicáveis, assim a explicação para os fatos psíquicos pertence ainda ao imponderável.

Apesar de um percentual grande de homens vir se recusando a reconhecer o espírito de religiosidade, a presença de algo sobrenatural dentro de si mesmo, percentual esse que vem diminuindo nestas últimas décadas em virtude do grande interesse despertado pela parapsicologia e pela hipnose, todavia, aqueles que ainda se recusam a aceitar essa parte sobrenatural existente dentro de nós, não podem impedir que esta tendência inata, que este algo sobrenatural apareça por exemplo na simbologia dos sonhos, nos arquétipos tão bem estudados por Jung. Existe na mente humana uma capacidade de reproduzir imagens, configurações que expressam princípios primordiais, princípios de caráter coletivo, porque aparecem repetitivamente em todas as tradições, estejam elas cronológica ou geograficamente distantes. O folclore, por exemplo, os mitos e contos da literatura universal encerram temas bem definidos que reaparecem sempre e por toda a parte - reaparecendo inclusive nos sonhos, nas visões e na imaginação dos indivíduos. 

Arquétipo - Seriam disposições inerentes à estrutura do sistema nervoso que conduziriam à produção de representações sempre análogas ou similares, de natureza coletiva. Do mesmo modo que existem pulsões herdadas a agir de modo sempre idêntico, que envolvem os instintos, existiriam também tendências herdadas a construir determinadas representações que aparecem de forma análoga ou semelhante nas várias tradições, nas mitologias, nos folclores, nos mitos. A esse fenômeno de se defrontar com tais fatores do inconsciente de forma vivencial, experimentando sentimento de mistério e de profunda e inesquecível impressão, a psicologia dá o nome de "estado numinoso". O homem procura objetivar essas experiências através de imagens, como deuses, demônios, espíritos etc.

É dessas imagens arquetípicas, que se encontram no inconsciente do homem, que são retirados os dogmas. São esses elementos que vieram a se constituir na base das diversas formas de religião. Espalhadas pelos vários grupos étnicos, encontramos idéias básicas tais como: dilúvio, paraíso perdido, dragão, mocinho, vilão, homem Deus sofredor que, segundo Jung tem mais de 5 mil anos, trindade que é ainda mais antiga etc. 

São palavras de Jung: "O dogma é como um sonho que reflete a atividade espontânea e autônoma da psique subjetiva, isto é, do inconsciente". 

Por causa de exprimir uma totalidade, um conteúdo implícito muito mais amplo, que nós poderíamos chamar de irracional, em contraposição ao que há de racional em uma experiência científica, é que o dogma perdura através dos séculos. 

Teosoficamente falando, as idéias contidas nos dogmas não foram inventadas. Nasceram quando a humanidade ainda não havia aprendido a utilizar a mente. Antes que os homens houvessem aprendido a formular pensamentos, estas formas arquetipais vinham até eles, proposição esta que se ajusta à teoria das idéias de Platão, quando afirma que as idéias preexistem na mente humana, faltando apenas encontrar o caminho para contatá-las. O homem, não conseguindo compreender o seu significado total, pois esta era a forma inconsciente de comunicação entre a parte inferior do ser e sua parte superior, conservaram-nas com devoção, devido ao impacto que causaram em sua psique. 

Com o correr do tempo, o homem começou limitando cada vez mais o sentido universal da simbologia registrada nas tradições e, por assim dizer, foi progressivamente estratificando as idéias contidas nas imagens arquetipais.

Todavia, a própria Igreja Católica admite que o dogma é vivo e, portanto, sujeito a uma dinâmica que envolve modificação, evolução. 

Um ponto importante a ser considerado é o de que o espírito científico procura desprezar o valor emotivo das experiências pessoais - a análise tem de ser sempre fria, distante. Acontece, porém, que a simbologia do dogma, das formas arquetípicas, são profundamente expressivas. São exemplos: a figura de uma pirâmide, de uma mandala, do círculo nas suas variadas composições, da tetraktys Pitagórica, que representa o valor do quatro, do quaternário, ligado aos quatro elementos alquímicos, a visão da cruz, do cálice etc. Quando essas imagens chegam espontaneamente e vividamente à mente do homem, não digo só na forma de pensamento, mas numa percepção vivencial, que pode ser só na imaginação ou em visão a três dimensões, colorida etc., elas produzem uma impressão de ordem emocional mística indescritível, capaz de desencadear processos que levam a estados interiores particulares, como passagem para uma dimensão fora do espaço-tempo, perda do medo da morte, união com o todo, isenção completa do sentimento de separatividade e de egoísmo etc. 

Mandala - Palavra Sânscrita que, no Budismo e no Tantrismo, se refere a um diagrama composto por círculos e quadrados concêntricos, ornados de cores simbólicas, e que reproduzem o universo concebido pela cosmogonia Indiana.
 

É interessante notar que as crenças religiosas, os dogmas, têm grande função psicológica. É mais fácil tratar de alguém que tenha fé nos dogmas; essas práticas amenizam as experiências psíquicas imediatas, desequilibrantes e que poderiam ser superiores às forças do indivíduo naquele determinado momento. 

Dogma - Ponto fundamental, apresentado como certo e indiscutível, de uma doutrina(*) religiosa ou filosófica e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema.
       *.
Doutrina - Conjunto de dogmas ou de noções que constituem um sistema de ensino religioso, filosófico, político, econômico, social ou de qualquer ramo do saber. Conjunto de dogmas ou de noções que versam sobre uma determinada matéria, como por exemplo, a doutrina da imortalidade da alma.

A confissão, por exemplo, corresponde a uma catarse; leva a pessoa a colocar para fora sentimentos que estão produzindo tensão. 

A prece funciona como auto-sugestão. Pode, também, funcionar como liberação do sentimento de culpa, porque traz idéia de perdão.

A adoração do Cristo crucificado proporciona tranquilização porque traz, implícita, a certeza da redenção pelo seu sangue. Comparar a própria dor e sofrimento com o de Cristo na cruz, consola, torna a dor mais sacrificial, mais heróica; parece que libera certa quantidade de energia. 

Esse fato de os dogmas e crenças funcionarem como recurso psicológico, pode ser considerado como uma faca de dois gumes. Por um lado, podem tranqüilizar, e o fazem àquele que tem fé, mas, por outro lado, podem levar a uma grande dependência, dependência que pode prejudicar a capacidade de introspecção, a capacidade de buscar com autonomia a solução para os próprios problemas. Pode, também, prejudicar a possibilidade de uma penetração no sentido mais profundo, no sentido arquetipal dos próprios dogmas. 

A comunhão, por exemplo, para a maioria das pessoas - não para todas - é um ato externo, altamente tranquilizador porque vem acompanhado de uma certeza da proteção divina, mas, ao mesmo tempo, pode provocar uma acomodação no sentido de não se buscar meios e práticas que levem o homem ao despertamento real do Cristo interno, imagem arquetipal que está contida na comunhão. 

Os estudiosos são unânimes em afirmar que os sonhos provém das profundezas do ser e sempre procuram exprimir alguma coisa que o eu consciente não conseguiu detectar - pode ser do plano psíquico individual, bem como do inconsciente coletivo, e do plano espiritual. 

Com base em afirmativas de Jung, as experiências psicológicas têm mostrado que certos conteúdos que aparecem em sonhos, ou em visões vívidas, ou em idéias na imaginação, sem qualquer dedução lógica, provém de uma parte da psique mais ampla do que a parte consciente. Com freqüência, esses conteúdos encerram uma compreensão ou um saber de grau superior àquele que poderia ser elaborado pelo mental racional. O termo mais empregado para designar tais acontecimentos tem sido o de intuição. É interessante que esses conteúdos trazidos pela intuição são aceitos pelo consciente e trazem uma marca de certeza inexplicável. 

Sabe-se perfeitamente que a descoberta de grandes leis da matemática e da física não foram fruto do raciocínio consciente, mas surgiram na mente dos descobridores quando eles menos esperavam. Henri Poincarè (1.854-1.912), matemático, professor de mecânica física na Sorbonne e também de cálculo das probabilidades e mecânica celeste, afirma que as suas melhores soluções surgiram quando ele estava andando de bonde. Einstein insiste, de maneira categórica, que a teoria da relatividade lhe veio por intuição; foi somente a posteriori que ele usou a inteligência e o raciocínio matemático para demonstrar o acerto de uma concepção cosmológica sobre a qual já não existiam dúvidas para ele. 

Tudo indica que existe dentro de nós uma capacidade de percepção da realidade superior à do raciocínio abstrato, cujo mecanismo está fora do alcance da nossa consciência de vigília. 

A psique é constituída por dois departamentos: pelo consciente, observável e por uma parte indefinível, mas cuja existência somos obrigados a admitir e que é normalmente designada por inconsciente. 

Por desconhecer o que está além do consciente, o homem, normalmente, tem medo de se tornar consciente de si mesmo; evita entrar no âmago da sua personalidade, permanecendo na periferia de sua realidade. 

Para que o homem consiga penetrar o conteúdo profundo que os dogmas e certas percepções paranormais encerram, passando assim por experiências verdadeiramente místicas, ele necessita de um treinamento paulatino e progressivo, que o leve a um autoconhecimento e a uma auto-organização interior.

 

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